sábado, 27 de julho de 2013

faz-me pensar em alguém...

precisamos de saír desta estagnada, esquizofrénica Europa

O título pode induzir em erro: não me considero um "eurocéptico" - muito pelo contrário, como espero deixar claro - nem me vou referir às velhas moedas de cinco tostões.

Cresci com a ideia de que a União Europeia (então Comunidade Económica Europeia) era mais do que um mercado livre. De algum modo, lá me convenceram que era um projecto de convergência social e política, definindo uma indentidade comum a um conjunto de nações diversas. Uma identidade que se afirmava na inclusão por oposição à exclusão - que tinha, até, um certo teor "missionário" e que, pela constante admissão de novos Estados, ia, aos poucos, alargando a sempre infame "fronteira europeia" - até que a mesma desaparecesse, ao encontrar o outro lado. Algo diferente de tudo o que tinha sido tentado antes, não uma conquista de território pela expulsão dos que lá estavam antes, mas um alargamento por inclusão dos outros, de acordo com o desejo destes e a sua identificação com um ideal comum. Sempre acreditei ser este o modelo de globalização mais ético - se levado até à última consequência, a admissão de todas as nações se e quando quisessem. Demorasse o tempo que demorasse, o ideal da UE não podia deter-se em fronteiras ditadas pela proximidade geográfica, nem pela semelhança racial, sendo fundado na própria negação disso. Cresci a acreditar, mesmo, que ideia motriz do "projecto europeu" era universal, a expressão de uma visão humanista da sociedade - não defesa em bloco do nível de vida nos estados membros.

Nunca me chocou a tão lamentada incapacidade de afirmação política em bloco, a nível de política externa. Os blocos existem para se medir com outros blocos e a UE não era nada disso, era o respeito pelo outro acima de tudo, por mais execrável que nos parecesse. Qual capacidade de projecção de força militar? A "nossa" força era moral e existencial. Não uma superioridade moral, não uma sobranceria chauvinista - somente a força de sermos como éramos, de não tentarmos mudar ninguém, de procurarmos, tranquilamente, apurar um ideal humanista e solidário que, acreditava eu, era tranquilamente extensível à humanidade inteira.

Ainda que levasse séculos. Parecia-me importante aprofundar e apurar a experiência europeia-humanista-universal, ainda que isso nos custasse protagonismo na política internacional. Não fechando-nos enquanto bloco, já o disse, mas mantendo, simultaneamente, uma cara, uma identidade em constante evolução e os braços abertos a quem mais se indentificasse, independentemente de interesses económicos ou de politiquices sectárias regionais. Algo tão simples como o que juntou os Não Alinhados, apesar de termos os nossos laços históricos. Acreditei que a tranquilidade era, com o tempo, a chave para o reencontro de toda a família humana com a sua verdadeira face, aquilo que faz de todos nós humanos e irmãos. E que esse era o caminho por que a Europa seguia.

Não sei se sonhei demais, se confundi esperanças e desejos com a realidade, se me deixei levar por misticismo e religião, não sei. Por um lado, sempre achei e acho que o entendimento que certa filosofia faz da "natureza humana" como coisa definida e imutável, tem qualquer coisa mais de preconceituoso do que de empírico. A experiência mostra-nos tendências de comportamento mas, também, capacidade de tomarmos consciência e de transcendermos essas tendências, como é defendido pela muito empírica Psicologia. Acredito que essa capacidade permitiu à cultura europeia (de modo não diferente de outras culturas) evoluir realmente, tornando cada vez mais reais, não só possíveis mas correntes, éticas de comportamento social que eram, inicialmente, esperanças messiânicas da religião.

Não sei quando é que a Europa perdeu a cabeça. Quando é que a preocupação com a defesa do nível de vida europeu se tornou mais importante do que os valores culturais em que nos revíamos. Quando é que o proteccionismo europeu - uma evidente fragilidade, imaginada fortaleza - de atitude defensiva se transformou em agressividade, em inveja, em pânico de perdermos o primeiro lugar na economia e o domínio da História. Quando é que deixámos de acreditar em nós mesmos. Quando é que começámos a servir a outros senhores, para não "perdermos esse mesmo combóio" da História. Quando é que nos virámos uns contra os outros e esquecemos o que nos unia, entregando-nos à auto-fagia. Quando é que a discussão e a construção deran lugar à competição.

Para os pragmáticos, que estão a ter o seu momento (mas, alas, como tudo o que é impermantente, há-de passar à história), talvez eu seja ingénuo nisto de acreditar que a História é conduzida pela Filosofia e pela Cultura, não pela medição de forças, poder, finanças. Que, no longuíssimo prazo, os vencedores são determinados pelas ideias, não as ideias pelos vencedores. Para outros, talvez seja demasiado messiânico acreditar que é mais importante investir nas ideias, no apuramento e rectificação das mesmas, do que simplesmente no combate por aquilo que acreditamos, num dado momento, ser verdadeiro - isto, porque o combate deve seguir as ideias, que evoluem. 

Combatamos, então, pelo direito às ideias e pela ideia de evolução, com tudo o que a mesma implica. Embora diferentes assunções de evolução sirvam a diferentes justificações sectárias, no seu sentido mais geral, mais universal, mais físico - mesmo, mais materialista - a evolução não compreende as relações bióticas. A natureza não compete consigo própria para evoluír. Passe a redundância, a natureza evolui para se manifestar a si mesma, plenamente. Da singularidade para os quanta e destes para os átomos, moléculas, gases, líquidos e sólidos, seres vivos, seres sensientes, o fundamental não é nem a sobrevivência, nem o aumento da complexidade, nem a densidade da informação - o mais fundamental de tudo, é que tudo o que existe e virá a existir, existe desde sempre, ou desde o primeiro momento, no essencial da natureza.

Aspecto da natureza, o ser humano evolui para manifestar a sua humanidade, que nos identifica a todos, desde sempre, para lá de todos os medos e esperanças, desejos e ódios, vitórias e derrotas.

Apercebo-me, agora, de que era assim a minha Europa. Uma pátria verdadeira, um estandarte, um ponto de chegada, porto no fim-do-mundo, sempre almejado, posto que sempre por achar.

A diferença que noto, hoje em relação a há 25 anos, é que a pátria deixou de ser benquista. O individualismo extremou-se, deixou de ser uma libertação da consciência do jugo da moralidade fechada e passou a ser, ele próprio, o jugo da consciência, a nova religião. Enquanto a pirâmide social se agudiza, a verdade é que o açambarcamento deixou de ser o ideal apenas de alguns, para ser o da maioria. Competimos furiosamente, tribalizamo-nos, pintamos ou vestimos o corpo, perfuramo-lo ou perfumamo-lo, afirmamos, afirmamos, afirmamos, agitamos bandeiras, gritamos insultos, agredimo-nos por todos os meios possíveis, incapazes de construir, porque o projecto e o sonho, princípio de toda a construção, deixaram de estar na moda.

Acho que a crise é europeia - estendendo, agora, o termo a toda a civilização dita "ocidental". Esta civilização, nestas duas décadas que são tudo consigo observar, estagnou, deixou de produzir ideias, passou à defensiva, depois à agressão externa e interna, ao ódio a si mesma, uma espécie de esquizofrenia ou de doença degenerativa e auto-imune.

Há 40 anos que nenhum ser humano voltou a pôr os pés no Mar da Tranquilidade: qui potest capere capiat.

Como dizia um cantor da nossa praça, é preciso ter calma. Os instrumentos de que precisamos para saír desta tristeza estão cá todos, embora no inconsciente. Respeito e consideração pelo outro. Gentileza. Vontade de fazer melhor, de chegar mais longe.
Paciência. Determinação. Generosidade. Alegria, que resume os anteriores. Não são virtudes de santos, são atributos da mesma natureza humana que, para alguns, não passa de instinto de sobrevivência, de genes egoístas.

Chamem-me lírico, superficial, insubstancial, sonhador, pelas pobres palavras que escrevi. Mas não me tiram da cabeça que não é com política macroeconómica que saímos desta crise.

É com ideias, cultura, educação, confiança e identificação com algo que não nós próprios, nem a nossa casinha, bairrinho ou cidadezinha, algo de suficientemente outro, difícil, exigente e duradouramente empolgante para não ser apenas mais uma ilusão passageira. Não pela identificação obstinada com pretensas verdades, mas com aspectos que são meras pedras no caminho, úteis enquanto forem úteis, no caminho para o Longe.

Só isso me pode levar para a rua, para fora da minha zona de conforto, para tentar fazer melhor.


começo auspicioso

No outro dia, ao descer o Campo Grande, um passageiro de um taxi que me ultrapassou, espremendo-se para fora da janela, gesticulou para o passeio do lado direito (onde, por sinal, está implantada uma ciclovia). Questiono-me se, com tanta ideia peregrina que por aí se manifesta, não estaremos a permitir uma espécie de "pedagogia negativa" em que alguns cidadãos, no exercício da sua faculdade de julgar (e do seu direito de opinar), passam a considerar que os velocípedes já não têm direito de circular no asfalto - uma vez que têm a ciclovia. Perco a conta aos zelotas que se preocupam em me brindar com curtas diatribes, normalmente em linguagem bastante venal, avisando-me sabe-se lá do quê (talvez, que estou a abusar dos meus direitos? na sua mente desarrumada, talvez caiba essa contradição). Por vezes são os motoristas, mas os penduras, na minha experiência, são muito piores.

Lembro a quem possa não estar esclarecido, relativamente a esse assunto, que o Código da Estrada estabelece o direito relativamente à circulação na via pública e que não proíbe o trânsito de velocípedes, nem em ruas, nem em avenidas urbanas, nem em estradas municipais ou nacionais, dentro de localidades ou fora delas, a menos que a sinalização assim o estipule. E nenhuma tal sinalização existe, que eu conheça, nos itinerários que costumo fazer. Assim sendo, o zelo destes cidadãos não passa de um traje hipócrita, cortado e costurado com a sua frustração de querer andar mais depressa e não poder fazê-lo, sem privar outro cidadão do exercício da sua liberdade, dentro dos limites do direito.

Posto isto, quero deixar escrita - pois não pude gritá-la de modo a que a ouvissem - a minha resposta aos considerados cidadãos que, há poucos minutos, subia eu o mesmo Campo Grande, romperam a calma do serão alfacinha com uma série de violentas apitadelas (talvez por graça do condutor) e, ainda, esta pérola, berrada da janela pelo pendura - "desvia-te, ó puto de merda!". A este estimado concidadão, sobretudo, quero dirigir a minha resposta:

"vai para o Diabo que te carregue, seu CABRÃO DE MERDA"

Juro que ponderei as minhas palavras e procurei um insulto que, sem atingir inadvertidamente terceiros (o que frequentemente acontece no insulto), carregue toda a minha própria frustração, por não conseguir não me irritar com esta gentalha. É, decerto, em grande importância, por esta mentalidade de besta quadrada ser tão generalizada, na nossa sociedade, que estamos como estamos. Muita coisa mudaria, se passássemos a ter a consideração e o respeito pelo outro como princípio basilar de convivência.

Agora que já está cá fora, vou dormir e tentar sonhar que amanhã o rácio de pessoas e bestas seja um cagagésimo mais elevado (ou seja, mais favorável ao numerador).

Boas Noites.