sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

4 Alternativas ao Crescimento Empobrecedor - Conferência "Do desenvolvimento alternativo às alternativas ao desenvolvimento" por Boaventura Sousa Santos/CIDAC, 16/1/2014

Uma das razões por que nos vemos como "reféns" da troika e das políticas "de austeridade" é que o pensamento criativo é muito mais difícil (e raro) do que o pensamento analítico. É mais fácil analisar, criticar, apontar o dedo às deficiências de um dado caminho do que imaginar outros caminhos. Muito mais difícil, ainda, é imaginar caminhos adequados à realidade: requer, simultaneamente, um conhecimento profundo e crítico desta (pensamento analítico) e a capacidade de recombinar os dados e projectar "realidades diferentes" que não sejam apenas quimeras.

De onde a confiança com que o governo acusa a oposição de ter um discurso destrutivo e de não apresentar alternativas e, em parte, a tíbia postura da parte maior da oposição, que foge à proposta e ao compromisso.

Ontem, na conferência"Do desenvolvimento alternativo às alternativas ao desenvolvimento", promovida pelo CIDAC, Boaventura Sousa Santos referiu QUATRO propostas alternativas ao sufoco do "crescimento empobrecedor", dito "austeridade". Não estou por dentro da vasta cultura literária e das actividades dos movimentos sociais no mundo, mas quero fazer eco das quatro propostas de Boaventura Sousa Santos na tentativa de erodir o mito de que a via seguida actualmente é a única via.

1) Proposta "indígena" do bem-viver: "vida em harmonia (i) consigo mesmo, (ii) com outras pessoas do mesmo grupo, (iii) com grupos diferentes, (iv) com Pachamama – a Mãe Terra (v) seus filhos e filhas de outras espécies e (vi) com os espíritos" (fonte: http://www.fepolitica.org.br/index.php/pedro-ribeiro/83-bem-viver-uma-proposta-para-a-vida-da-terra.)

Revolucionando/invertendo tanto as relações sociais humanas como a relação do Homem com a natureza, pretende INSERIR A NATUREZA NA SOCIEDADE (dando-lhe "personalidade jurídica e direitos). Longe de irrealismo, esta proposta parte da constatação de que o ser humano é um elo numa rede de interdependência e que a boa ordenação da sociedade humana implica a consideração da parte que cabe ao "não humano" - ou, melhor, à não distinção entre o humano e o não-humano.

Estes princípios foram adoptados nas constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009) - mesma fonte.

Aludindo à actual valorização da natureza, nas sociedades capitalistas, enquanto recurso económico (recursos naturais e não valores naturais) e mencionando o caso absurdo de uma indústria poder "comprar" o direito de poluir um rio se estiver disposta a pagar, a título de indemnização, o valor dos recursos (por exemplo, peixe) que deixarão de poder ser utilizados como consequência da poluição, Boaventura Sousa Santos sugere que, adoptando um princípio de valorização da vida não humana, tanto animal como vegetal, dos ecossistemas e dos processos ecológicos, a economia teria que se ajustar a formas de criação de riqueza que não se limitassem a recolher recursos detruindo os ecossistemas, pela impossibilidade de indemnizar a sociedade no valor dessa destruição.

2) Economia solidária: o papel das pequenas cooperativas e das relações comunitárias na satisfação das necessidades fundamentais, assumidamente sem o propósito de gerar lucro.

Numa perspectiva de economia plural, não se trata de lançar um anátema sobre as actividades lucrativas mas de, a par destas, permitir e fomentar o florescimento de uma rede de relações económicas solidárias que retirem da esfera do lucrativo a exclusividade da possibilidade de satisfazer as necessidades mais fundamentais.

3) Soberania alimentar: reduzir a vulnerabilidade alimentar das populações, enraizando a produção de alimentos nas comunidades, evitando que, dessa forma, a população não viva sujeita às flutuações de um mercado global de alimentos negociados como "commodities". Via campesina (http://viacampesina.org/), hortas urbanas, eco-aldeias, novamente as cooperativas.

4) "Zonas libertadas do mercado": trocas de bens e serviços sem dinheiro, seja de forma organizada (inúmeras associações de troca por "créditos" que têm surgido pelo mundo, centros de troca de coisas usadas, "couch-surfing", "woofing", trabalho voluntário) ou por alteração da forma de estar na vida, aceitando cada cidadão incorporar o princípio de dádiva do seu tempo e do seu saber a quem precise.

"Uma economia de mercado é saudável, uma sociedade de mercado é moralmente repugnante", disse Boaventura Sousa Santos, referindo-se à mercantilização daquilo que é fundamental ou estratégico: água,  saúde, educação, etc...

Ao referirmo-nos a "zonas libertadas" não invocamos a abolição do mercado, mas, novamente, sustentamos que haja outras formas que permitam um acesso ao fundamental para uma vida digna, não dependente da muito conjuntural capacidade de produzir riqueza.


É importante realizar e fazer eco destas e de outras propostas que existem e que são postas em prática, denunciando a narrativa mentirosa de que a via neo-liberal é a única via.

4 comentários:

  1. Estas propostas não indiciam alternativas, mas, pelo contrário, a aceitação da inevitabilidade do domínio neo-liberal. Para o neo-liberalismo seria uma bênção que todos os espoliados e excluídos pelo mercado arranjassem forma de sobreviver autonomamente à margem dele, em vez de reivindicarem integração, subsídios, pensões e demais "gastos sociais" que lhe entravam a concentração capitalista. Indiciam que a via neo-liberal é a única possível pelo que só nos resta criar almofadas para aparar os seus danos colaterais, "reservas de índios" onde os segregados, por viverem ali um paradigma não-mercantil, se contentam com as precárias ou nulas condições de trabalho, produtividade e remunerações que não aceitariam no mercado.

    Mário J. Heleno

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  2. Obrigado e concordo que ainda não constituem uma alternativa. Mas acho que espelham uma necessidade que é particularmente urgente em Portugal: que as alternativas partam das bases da sociedade. Somos, hoje, uma sociedade fragmentada e incapaz de frentes de acção comum. Medidas como estas consistirão em "reservas de índios" até ao momento em que sejam abraçadas por uma fracção significativa da sociedade. Em todo o caso, a medida que mencionei em 1º lugar (proposta do bem-viver) corresponde a princípios que já estão na letra das constituições de vários países, cuja materialização no dia-a-dia, na legislação, na economia, etc... terá que ir sendo construída.

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    1. ... Só que "o momento em que sejam abraçadas por uma fracção significativa da sociedade" ocorrerá no mesmo amanhã cantante das outras "quimeras", uma vez que assim que a "reserva de índios" deixar de dar jeito ao neo-liberalismo ( dá-lhe imenso jeito que os "supérfluos" do mercado de trabalho se desenrasquem por si mesmos à margem dele em vez de reclamarem "Estado Social" ) caem-lhe em cima o Fisco, a ASAE, a Segurança Social e a Inspecção do Trabalho e exterminam-na.

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    2. Pois. Mas a coexistência das "utopias" (rejeito o termo quimeras) com o mercado não se fará no contexto neo-liberal actual. Também não digo que são essas acções que irão substituir o neoliberalismo. Pelo menos, não cada uma, por si. Mas o aparecimento destas e de muitas outras, num contexto de rejeição de fundo do modelo neoliberal pela sociedade, poderia levar a que se criassem mecanismos que possibilitem e enquadrem as ditas acções num novo modelo social. O caso da Bolívia - que só conheço muito superficialmente - é interessante. Um país onde a acção "musculada" de um governo anti-neoliberal (nacionalização parcial da exploração de hidrocarbonetos, por exemplo) foi acompanhada de uma verdadeira rejeição de uma multinacional de fast-food pelo mercado (não foram expulsos ou impedidos de abrir lojas, mas a população simplesmente não aderiu). Em suma: haverá alternativas macro e micro... Fiz eco das que ouvi, mas espero que haja mais e que se façam ouvir também...

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