sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A manipulação do "fracturante"

A liderança PSD conseguiu, na AR, aprovar a realização de um referendo sobre a lei (já aprovada) que possibilita a co-adopção. Conseguiu-o sem o apoio do seu parceiro de coligação e contra a vontade e consciência de muitos dos seus próprios deputados (impondo a disciplina de voto).

Não vou discutir a matéria da lei ou do referendo, pois me parece que é absolutamente necessário que tomemos consciência dos contornos estuturais desta acção, que traduzem o modo actual de fazer política.

Leva-se à praça discussões emocionais e "fracturantes", procurando exaltar e dividir as opiniões. Este referendo, a "canonização" do Eusébio e a "convergência das pensões" são a mesma coisa: proporcionar à opinião pública assuntos de divisão e conflito que criem e mantenham, nos cidadãos, um espírito de aversão e desconfiança em relação aos outros. O mecanismo é simples: criar assuntos que puxem por uma resposta impulsiva, imediata, acrítica, emocional, errática; a par disto, promove-se uma sociedade de opinião fácil, onde todos se sentem habilitados a opinar sobre tudo sem um mínimo de esforço por analisar as questões.

Nem interessa "ganhar" o referendo: o melhor é mesmo que o resultado seja o mais próximo de 50% - 50%. São cortes na sociedade: conservadores contra liberais, jovens contra velhos, ricos contra pobres, privado contra público, pais contra professores, Lisboa contra Porto, etc... Até as manifestações e contestações ao Poder e às instituições: interessa que elas aconteçam e que tenham a maior visibilidade, pois sabem que as reacções que vão provocar são tendencialmente emocionais, por vezes tribais ou facciosas, mas raramente racionais. Aumentam a sensação de clivagem profunda na sociedade e de isolamento dos indivíduos, de incapacidade de acção.

Tudo facadas no bolo para fragmentar e manter fragmentada a sociedade, incapaz de se unir e de agir em bloco contra quem a manipula.

Todas estas "questões fracturantes" têm uma mesma nota característica: apelam a uma resposta emocional e não racional, impulsiva e não analítica.

A força da democracia depende da força da sociedade democrática - se a sociedade estiver embrutecida, torna-se manipulável pela simples incapacidade de reagir em conjunto.

As "questões fracturantes" perseguem e alcançam, ainda,  outro objectivo: semear e alimentar o distanciamento das pessoas em relação às instituições e ao poder, através do desânimo, do niilismo como saída fácil. Este distanciamento não penaliza aqueles que jogam este jogo de manipulação, antes pelo contrário: permite-lhes fazer o que lhes importa em paz e sossego.

Há quem defenda que este é o "preço da Democracia", o que é outra forma de desviar o olhar da questão central: a Democracia não é as suas regras, mas a sociedade que lhes dá corpo. Numa sociedade fraca, como a portuguesa, até as regras que existem são impunemente pisadas a bel-prazer por quem detém o poder.

Quem detém o poder está, neste momento, empenhado em enfraquecer a sociedade civil - e, portanto, a democracia. Materializando o chavão: "democracia de fachada".

Quem tiver os olhos abertos recusar-se-á a discutir "questões fracturantes" e empenhar-se-á, pelo contrário, na denúncia da manipulação que lhes está por trás.

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