quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Usar a praxe

A maioria das questões é menos linear do que o nosso primeiro juízo sobre as mesmas. Sobre a praxe há muito mais a reflectir do que a sua influência na formação da capacidade de os futuros adultos saberem dizer "não" - tal como a maioria das questões, na vida, deveriam merecer mais reflexão do que uma simples ponderação entre aceitação ou rejeição. Este modo de pensar "dualista", mesmo quando não corresponde à própria demissão da razão, serve a preguiça ou o vício de manipular as ideias, em vez de as seguir. De desligar o pensamento quando apetece ou quando achamos que já chega, postulando, logo à partida, que o que importa é decidir de que lado estamos.

A universidade não é a primeira etapa da vida de um adulto: é, talvez, a derradeira da sua vida de "criança", independentemente do facto de o estatuto de maioridade legal ser conferido, em Portugal, aos 18 anos. Aceita-se, portanto, que os estudantes gostem sobretudo de brincadeira. Objectivamente, a praxe é uma brincadeira de miúdos, contendo todos os elementos presentes no recreio das escolas e liceus: espalhafato, música, energia, irreverência, regras (como todos os jogos) e, de uma forma muito evidente, a mimetização, de uma forma fantasiosa, de alguns comportamentos "dos adultos".

Há o reconhecimento, por parte dos estudantes, da sua própria importância no mundo. Marcham pelas ruas "trajados", como quem diz "eu agora também conto"! Interrompem-se aulas - a comissão da praxe chega ao anfiteatro e o professor cala-se: fenomenal! O novo estatuto de estudante permite-lhe medir "autoridade" com o professor, ou, de outra forma, questionar essa autoridade, impingida como inquestionável durante anos pelo sistema de ensino actual. Ironia: vale a pena passar pelo ridículo de uma marcha de caloiros, só para saborear este novo estatuto... Tudo, ainda, descoberta, experiência, teste aos limites do comportamento.

Como imitação que é a praxe, a forma que assume decorre da sociedade adulta que pretende mimetizar. Se a praxe apresenta ao novo estudante uma realidade social hierarquizada, estratificada (seja por anos de matrícula), organizada em associações de âmbito institucional, regional e nacional, é porque a sociedade que a inspira tem essas características. Acho, portanto, um lirismo pretender, por um lado, acabar com a praxe e, por outro, querer modificá-la, expurgá-la dos seus excessos e transformá-la numa "tradição" benigna de boas-vindas. A praxe continuará a existir, nos mesmos moldes, seja qual for o seu nível de organização legal, como espelho da sociedade em que se insere.

Incomoda-nos a deferência imposta aos caloiros, perante os mais velhos? Indaguemos em que é que a nossa sociedade apresenta as mesmas estruturas de poder discricionário. Procuremo-lho nas hierarquias institucionais, nos estatutos de VIP, nas peneiras e caganças a todos os níveis, económico, social, intelectual. Queremos combatê-la? Preocupemo-nos em ser cidadãos adultos humildes, objectivos, verdadeiros. Em nos sentirmos responsáveis pelo outro sem, em momento algum, pretendermos impor a nossa ideia do que é melhor para ele.

Incomoda-nos a condição de se sujeitar à regra ou ficar excluído? Questionemos a nossa vida social, a forma como nos agrupamos, os clãs, as classes, os clubes, os partidos, as igrejas, os bairros, as tribos urbanas. Como, constantemente, nos fechamos em grupos homogéneos e excluímos os profanos - ou seja, os que não respeitam a mesma regra. Queremos combatê-la? Adoptemos uma postura integradora e fraterna, aceitemos os outros sem condições, com as suas particularidades, diferenças de opinião.

Incomoda-nos a violência, a humilhação, o ridículo que, por vezes, se manifestam em certas actividades da praxe? Perguntemo-nos onde radica essa violência, se não é, também ela, na incapacidade de aceitar o outro enquanto ser livre, de o deixar ser livre e existir enquanto outra vontade independente da nossa. Perguntemo-nos se a violênica não medra numa cultura que exalta a competição e a ascenção social como forma de afirmação existencial. Queremos combatê-la? Pensemos, primeiro, em alterar radicalmente as nossas aspirações existenciais, do cru e cruel exercício de poder bruto sobre a natureza e sobre a sociedade para um cultivo da curiosidade pelo mundo, do desejo de encontro com o outro e com o universo. Depois, em formas de existência social e de convivência não violenta.

Quanto à praxe, está aí para ficar. Se a sociedade for outra, pode ser que a praxe se torne uma forma de acolhimento, gratuito, universal, aos novos estudantes. Ou vice-versa? Quem sabe se, nesses derradeiros anos de juventude despreocupada, a experiência de uma fraternidade verdadeira - universal, não sectária - sem imposições nem condições, não ajudaria a formar adultos menos violentos, menos egoístas, menos convencidos da sua própria importância...

E se a praxe tomasse a forma de acções de voluntariado, se incluísse o serviço útil à comunidade em lugar da vassalagem aos veteranóides, podia realmente pesar no amadurecimento do estudante. Sobretudo, se implicasse uma observação prévia das necessidades e uma escolha da tarefa, pela sua importância ou urgência, por parte do "caloiro". Nunca, uma imposição da hierarquia.

Não gosto da praxe. Penso que o bom acolhimento a qualquer novo estudante deve ser universal, fraterno, incondicional. Não tem que ser merecido. Em todo o caso, penso que não é diabolizando a praxe, mas reflectindo no seu papel e no seu contexto que se pode compreende-la e, eventualmente, utiliza-la num sentido mais construtivo do que aquele que, actualmente, tem.

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